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29 de julho de 2018

Sobre "Matrix", cenouras e o novo mito da caverna

(Reflexões ligeiramente ácidas num blog que se quer doce...)

Quando assisti ao filme Matrix, no finalzinho do milênio passado (ou no comecinho desse, já não sei...), achei tudo aquilo incrivelmente viável e compreendi que, metaforicamente, já estávamos vivendo numa espécie de "matrix", branda ainda e que tenderia a se agigantar e deixar de ser metáfora com o passar dos anos, visto que (a meu ver) já havíamos (nós, a Humanidade) startado o seu processo (ao que parece - e para aliviar nossa dor moral) inadvertidamente: um descuido, um esbarrão, uma "apoiada" com o cotovelo esquerdo e... (Putz!!!) START!

Contudo, àquela época, eu acreditava mesmo que levaria muitos anos até que a "coisa" se revelasse insustentável e nos sufocasse e lobotomizasse como naquele filme e que eu, então já velhinha e de costas curvadas pelo peso dos anos, pouco assistiria daquilo e, quiçá também com a mente cansada, tampouco teria interesse intelectual para acompanhar o caso e me importar... Engano meu. Com o passar do tempo o tempo passa mais rápido (isso é fato incontestável entre os mais velhos) e nos alcança os tornozelos... E, então, fui alcançada (em pleno gozo de coluna e juízo sãos) por esse fenômeno que, creio, somos ainda incapazes de decifrar, compreender e nominar ou classificar adequadamente, com clareza e imparcialidade, visto sermos dele contemporâneos e estarmos assistindo apenas ao começo do seu processo, que terá ainda muitos desdobramentos... A tarefa será legada às gerações futuras.

Mas, afinal, de que estou falando? Que coisa é essa que nos agarra pelos pés e, no entanto, não nos faz sentir presos?? (Pelo contrário, nos faz sentir "livres"!)... Que fenômeno é esse que fomenta sentimentos e calores tão intensos quanto passageiros e que coloca discursos nas nossas bocas e nos faz empunhar bandeiras que passamos a defender com súbita paixão? (Até que conheçamos o novo tema mais comentado da semana, que passaremos a reverberar com renovada dedicação...).   

Quem aqui se lembra da repercussão que teve o fato de alunos de uma escola pública haverem recebido cenouras e uma receita de bolo como presente de Páscoa? Em qualquer comunidade saudável, sem danos sociais graves causados por décadas de irresponsabilidade e má gestão da coisa pública e onde os cidadãos não guardem traumas decorrentes da privação do mais básico e essencial a sua dignidade, um gesto como esse (a despeito do alegado erro de cálculo na compra das cenouras) poderia ser visto com naturalidade e mesmo alguma simpatia. Mas esse, infelizmente, não é o nosso caso. E indignaram-se aqueles pais. E legitimou-se sua indignação por meio de notícias na internet. E o que vimos a partir daí foi uma grande parcela da sociedade repercutindo o que, já então, era por todos considerado um grande absurdo. 

O que me causou assombro no episódio não foi tanto a indignação daqueles pais (justificável sob muitos aspectos), mas a maneira como a divulgação do fato levou outras pessoas (com ou sem filhos, em idade escolar ou não) a fazer eco daquela indignação, criando uma condição para que o ocorrido virasse notícia nacional... Vi uma pessoa, supostamente imune ao "mecanismo da matrix", comentando "o absurdo" com uma indignação que verdadeiramente não sentia, apenas repetia, reverberava..., porque assimilou e tomou para si o peso e o tom do "julgamento midiático" que foi dado para o caso.

E isso é verdadeiramente assombroso porque, por exemplo, o real e implacável sucateamento que vem sofrendo a nossa educação pública nas últimas décadas, o fato de uma enorme parcela dos nossos jovens de escolas públicas chegarem ao ensino médio (e o concluírem!), infeliz e vergonhosamente, sem capacidade de ler e compreender um texto como este mesmo (que você pode ler e compreender agora), ou o fato, ainda, de os nossos professores estarem desmotivados, desesperançados, achacados, adoecidos, com seus salários atrasados (para além de incompatíveis com o tamanho da sua importância social, também já esquecida), trabalhando (não poucos) em condições de ameaça ou de violência efetiva, sentindo-se impotentes e (natural que assim seja), em tantos casos, já indiferentes às próprias condições mazelentas de trabalho... Nada disso tem sido tema para uma pauta de absurdos noticiáveis sobre as nossas reais, mais profundas e mais severas indignações...

Que troço é esse que nos faz esquecer as nossas reais e mais sentidas dores e indignações para nos fazer assumir uma "necessidade" de vociferar por coisas mais amenas??

Na falta de novas figuras, vou me valer de uma velha... Creio que estejamos (re)vivendo um novo mito da caverna. Novo porque de tempos modernos, cibernético. Revisto e atualizado. No mito clássico, de Platão, os homens acreditavam ser realidade aquilo que viam projetado nas paredes da caverna que os abrigava. Nunca haviam saído lá de dentro e nem cogitavam haver outra vida possível. Tudo o que conheciam e que, portanto, reconheciam como "real" era aquilo que podiam ver projetado dentro da caverna: não mais que as sombras de toda uma realidade que existia do lado de fora - e que eles ignoravam. 

Hoje as paredes da nossa caverna são telas de aparelhos televisores, tablets, laptops, telefones celulares e outras fontes onde buscamos "informação" ou "entretenimento". E tudo o que vemos refletido ali nos soa tão real como a própria "Verdade". Fato. Acatamos. Não desconfiamos, não questionamos. Antes disso já replicamos, reverberamos, compartilhamos, nos inflamamos, tomamos partido aqui e acolá, levantamos a bandeira e a voz... Somos enredados e nos enredamos...

(Parêntese rapidinho para explicar que "buscar", aqui, pode ser pura força de expressão, uma vez que bastam alguns cliques para que nossos celulares inteligentes mapeiem tudo o que nos interessa e passem a fazer pipocar diante de nós as notícias que mais gostamos de ler, sem que precisemos de fato buscar coisa alguma.)

Na época da expansão nazista, um ministro da propaganda nazi disse que uma mentira mil vezes repetida se torna verdade. Em tempos de internet não é preciso tanto. E aquele ministro, vivesse nos dias atuais, seria poupado do trabalho tedioso - porque nós, cidadãos comuns, o faríamos em seu lugar. Nós, cidadãos comuns, partidários ou não daquelas ideias, replicaríamos e repetiríamos (ingenuamente ou não) aquilo que logo viria a se tornar "verdade"... Exatamente como temos feito (poupando o trabalho a outros na atualidade).

Mentiras ou meias-verdades tendenciosas, um fato distorcido ou simplesmente mal explicado, uma difamação decorrente de uma distorção dessas, um vídeo grosseiro ou uma piada infame e ofensiva, qualquer "coisa", uma vez publicada, será mil vezes repetida e replicada por pessoas que não se questionaram a respeito da veracidade, da importância ou utilidade daquele conteúdo e que, infelizmente, não consideraram a possibilidade de "quebrar a corrente" (deixando de compartilhar aquilo que elas mesmas, num exame franco de consciência, tomariam por dúbio ou mal explicado, questionável, tendencioso, mentiroso ou abusivo ou, simplesmente, "feio" e de mal gosto).

E, então, temos sido plateia generosa e sem filtro crítico diante de toda e qualquer coisa (produto ou ideia) que se queira nos fazer crer e propagar (ou propagandear...). 

Há uma diferença ainda, e perversa, entre essa caverna moderna que habitamos e aquela da antiguidade, de Platão: lá não havia quem estivesse de fora a manipular (literalmente, no caso) objetos quaisquer no intento de projetar esta ou aquela sombra na caverna, causando esta ou aquela impressão em seus habitantes... Hoje temos "titereiros" a pensar, analisar e escolher as "sombras" que contemplaremos como reais e repercutiremos mecanicamente no aconchego das nossas modernas cavernas...

Por isso é tão importante que estajamos atentos ao que replicamos e disseminamos por aí. É importante que startemos também o nosso "desconfiômetro", o nosso senso crítico (na maioria das vezes bastaria o bom senso), para podermos vislumbrar sair desse mecanismo cíclico e viciado com a nossa matrix (que alimentamos com o nosso comportamento e onde passamos a nos alimentar); para despertarmos do torpor da caverna, desse sono mórbido em que fomos lançados pela fugacidade das coisas, pela ligeireza dos acontecimentos, pela nossa ansiedade, ignorância e preguiça mental diante disso tudo, pela repetição de mentiras que nos confunde e embaça o olhar, pela recorrente banalização das nossas reais e mais profundas necessidades, essenciais, de respeito e dignidade em sociedade, ora reduzidas a (ou substituídas por) "necessidade" de bens de consumo e/ou de um "bem-estar" raso e imediato (também baseado no consumo)...

Existe um "preceito", controversamente atribuído a Sócrates¹, que sugere que tudo o que temos a dizer passe, antes, por um crivo com três questionamentos:

- o que tenho a dizer é verdade?
- o que tenho a dizer é necessário?
- o que tenho a dizer é importante?

Se nos fizéssemos essas 3 perguntas (e se pudéssemos nos responder com sinceridade), concluiríamos que andamos repercutindo coisas demais e, possivelmente, coisas que nada têm a ver com as nossas reais (negligenciadas e ressentidas) necessidades humanas...

No mais, é importante que esteja muito claro aqui que a responsabilidade por esse estado de coisas é muito nossa. Não podemos atribuir vilania e culpa aos "titereiros" do lado de fora da nossa caverna.  Eles não agem sem nós. Apontar-lhes o dedo seria simplificar demasiado as coisas e esquivar-nos do ônus que é nosso para abraçar a justificativa de que "não depende de nós, está acima de nós, não podemos fazer nada"... E gozar da paz de espírito que tal crença nos traria e "dar de ombros", permanecendo no mesmo lugar e mantendo a mesma postura... Quem decide passar uma notícia, matéria ou vídeo adiante, quem opta por clicar em "compartilhar", quem se deixa inflamar e repercute notícias absurdas sem refletir a repeito, afinal, somos nós próprios. Essa é a nossa parte e é a parte que podemos mudar. Para deixar de alimentar a nossa matrix... antes que ela nos devore.

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Notinha superpessoal de rodapé:
¹ Sim, acabo de replicar essa informação sem ter certeza da sua veracidade ou fonte, muito embora tenha declarado (e em negrito) que a referida atribuição a Sócrates é controversa (o que não necessariamente servirá para me redimir). De todo modo, creio, devido ao panorama atual e às circunstâncias em que estamos todos inseridos, que poucos (bem poucos) serão aqueles que me poderão atirar a primeira pedra...
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14 de julho de 2018

Um minutinho, por favor.




Ooops! Fui ali e volto já! ;)



Coisicas Artesanais - Simone dos Santos

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