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7 de outubro de 2017

História ilustrada - Devoção Congadeira e a história de Nossa Senhora do Rosário entre as Irmandades do Rosário no Brasil


Artista convidado: Alexandre Rosalino



Hoje, 7 de outubro, é dia de Nossa Senhora do Rosário. Considerada a Padroeira dos negros, Ela é festejada por Nações de maracatu e Irmandades congadeiras espalhadas por diversos cantos do Brasil... Por isso, hoje eu peço licença para (re)contar aqui uma história que ouvi muitas vezes, de variadas fontes, em diferentes contextos e com nuances diversas, contada por homens e mulheres d'Ela devotos.

Evitando fugir muito ao tema principal desse blog (que é artesanato), eu convidei, para ilustrar essa história, um artista que traz consigo forte vivência entre aqueles devotos de Nossa Senhora do Rosário (ele próprio, aliás, um devoto), fato que marca a temática de parte de seus quadros, inspirados nas festas, na musicalidade e na fé de homens e mulheres herdeiros e mantenedores dessa tradição que ele conhece tão bem. Ao ser convidado a participar deste post, Alexandre Rosalino, muito gentil e generosamente, agarrou a "missão" de criar um quadro especialmente para esta ocasião! ♥ ♥ ♥ Eita, que assim eu fico besta! Quanta honra♥ /\ ♥ 

Pois bem... vamos à história - que não é minha, mas daqueles homens e mulheres que a celebram todos os anos... Ela não tem local preciso nem data exata - como bem devem ser, aliás, as histórias que servem ao  arcabouço do Coletivo, onde podemos caber todos nós...

Dizem que o fato se passou muitos e muitos anos atrás... 


Num certo dia, daqueles tempos ainda de escravidão, num lugar onde hoje não seria possível precisar, o que se sabe de certo mesmo é que Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar! E que, rapidamente, o dono daquelas terras mandou seus homens de confiança resgatarem a Santa. Aos negros, seus escravos, ordenou a feitura de uma capela para abrigá-la. Capela erguida, a Santa resgatada foi então posta no altar e daí foi um tal de oração prum lado, ladainha pro outro, bênção de padre amigo da nobre família e tudo o mais de pompa que a ocasião merecia!

(Naqueles tempos, a gente sabe, os negros não podiam entrar nas igrejas - mesmo tendo sido erguidas por eles - e, portanto, ficaram de fora de toda a celebração...)

Ocorre que, misteriosamente, mesmo com capela erguida, rezas e bênçãos oferecidas, no dia seguinte a Santa tornou a aparecer no mar. E lá se foram outra vez os homens de confiança do sinhô buscá-la para colocá-la de volta em seu lugar, na capela. Mas o fato misterioso tornava a suceder nos dias seguintes... Quantas vezes fosse retirada do mar e colocada no altar da capela, tantas vezes a Santa tornava a aparecer no mar...

Após inúmeras tentativas frustradas, foi a vez de os negros, eles próprios, tentarem resgatar a Santa de uma vez por todas. Mas eles não entraram no mar para pegá-la. Não. Eles ficaram foi na beira da praia, de onde era possível avistá-la entre as vagas. Ali mesmo se dividiram em 2 ou 3 grupos com seus tambores feitos de pau ocado e folhas de bananeira (ou de couro de bicho...) e, ali mesmo, se puseram a cantar, a dançar e a tocar em reverência à Nossa Senhora do Rosário, que estava no mar (de onde, aliás, também aqueles homens e mulheres - ou seus antepassados - vieram chegar em terras de cá).

Um grupo, formado pelos mais jovens, "puxava" cantigas de grande vigor e tinha movimentação ligeira. Outro grupo, formado pelos mais velhos, vinha atrás, mais devagar, e entoava cânticos mais solenes, de notas longas e ritmo mais lento... Cada grupo cantava ao seu modo, com ritmos diferentes e todos ao mesmo tempo!

Ao passo que cantavam e tocavam, a Santa vinha se aproximando da praia, mais e mais, como que trazida pelas ondas ou... como que embalada magicamente pela cadência daquelas músicas e pela força daqueles homens e mulheres que cantavam para Ela!

Quando estava já bem perto da praia, Nossa Senhora pôde ver nos olhos daqueles homens e mulheres (mais que as feridas e as marcas que traziam em seus corpos) a dor que carregavam na alma, fruto da escravidão. E dizem que foi então que Ela se sentou sobre um dos tambores que os negros tocavam (aquele, sim, o SEU LUGAR - entre aqueles que cantavam em Sua devoção!) e que ali, diante deles e entre eles, foi que, compadecida de tanto sofrimento, Ela chorou...

Dizem que no lugar onde Ela chorou, bem onde o seu pranto tocou o chão, nasceu um pé de Lágrima de Nossa Senhora, de onde os herdeiros dessa tradição extraem as contas que usam, até os dias de hoje, para fazer o seu Rosário, que lhes fora dado por Ela.

O tambor onde Ela se sentou, chamado candombe (aliás, um naipe inteiro de tambores), é hoje guardado como relíquia em diversas Irmandades, não saindo nas ruas em cortejo, por se tratar de tambor sagrado. Em seu lugar saem às ruas as caixas, os patangomes, as gungas..., mas o candombe é usado até os dias de hoje para firmar bandeiras, quando se erguem os mastros nas festas que ocorrem em diversas comunidades congadeiras do nosso país.

Os cortejos saem ainda em dois grupos, hoje comumente chamados de ternos ou guardas. Como na antiga história, as duas guardas saem juntas. A mais jovem e de cantigas mais alegres e ligeiras, ficou conhecida como guarda (ou terno) de congo. Já a de toadas mais lentas e solenes, e formada pelos mais velhos, guarda (ou terno) de moçambique. Em algumas regiões, sabidamente no norte de Minas Gerais, esses grupos estão representados como Catopês e a eles se juntam outros grupos ainda... Marujadas, Caboclinhos e Caixas de Assobio cantam, tocam, dançam e saem em cortejo para louvar Nossa Senhora do Rosário!

Em seus ritos de devoção, esses grupos passaram a contemplar também São BeneditoSanta Efigênia (dentre tantos outros santos católicos) e relembram em suas cantigas as dores dos seus antepassados (que viveram os horrores da escravidão) e temas como a libertação dos escravos, por vezes cantando ainda para Oxalá, para Iemanjá, para Xangô etc, mesclando e amalgamando culturas de matrizes diversas num calendário festivo que (dependendo da Irmandade) tem início entre agosto e outubro e se estende até maio do ano seguinte.

Nas diversas regiões onde é festejado o Reinado de Nossa Senhora (também popularmente conhecido como "congado" ou "congada"), cada Irmandade, cada capitão e capitã, cada bandeireira e caixeiro, cada criança, devoto e irmão, todos contam aquela mesma história de Nossa Senhora resgatada do mar - obviamente dando nomes e características próprios da sua região, da sua cultura, do seu histórico social e focando neste ou naquele detalhe, de acordo com as histórias que ouviram de seus antepassados e que vêm sendo recontadas e retransmitidas de geração a geração...

No fundo, guardadas as particularidades inerentes a cada Irmandade (que revelam variáveis sociais, regionais etc...) a história é sempre a mesma e une a todos enquanto Filhos do Rosário e descendentes de uma mesma tradição.

Viva Nossa Senhora do Rosário!

Viva todo o Povo do Rosário! 

Vivam as Irmandades Congadeiras de todo o Brasil!

E vivam as histórias, os costumes e a fé, quando são capazes de nos unir de novo como IRMÃOS que verdadeiramente somos!

Coisicas Artesanais - Alexandre Rosalino
Sem título - óleo sobre tela - Alexandre Rosalino

"Lá no alto mar, êêê... tem uma luz que brilha
Lá no alto mar, êêê... tem uma luz que brilha
É o reflexo sagrado 
que alumeia o Rosário 
de Maria
É o reflexo sagrado 
que alumeia o Rosário 
de Maria"
(canto tradicional das guardas de moçambique em Minas Gerais)

* * *

Quero agradecer enormemente e do fundo do meu coração ao artista plástico Alexandre Rosalino, que se prontificou a pintar tão belo quadro (e carregado de memórias, de cores, fantasia, sentimento...) especialmente para este post! Quando o contactei, há alguns meses, com uma proposta maluca (sim, porque eu fiz a "encomenda" avisando que não iria comprá-la (!), que era tão somente para publicar aqui no Coisicas), ele, generosíssimo, em vez de me achar uma louca-varrida ou me mandar catar coquinho na ladeira, se envolveu, se entregou e decidiu participar!

Rosalino, querido, eu nem encontro palavras para demonstrar o tamanho da minha gratidão... Me sinto muito feliz e honradíssima com tua participação tão especial! Muito agradecida pela confiança e pela generosidade. Gradicidimáis da conta-! ♥ ♥ ♥

Quero agradecer também, e acima de tudo, à cada irmão e irmã da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis, pela acolhida generosa e carinhosa de sempre e entre os quais eu pude ver e sentir essa história pelo lado de dentro e vivenciar um pouco dos seus desdobramentos e seus mistérios, o que mudou a pessoa que eu sou e pelo quê me sinto profunda e eternamente agradecida! /\

Aos leitores, aviso que pretendo apresentar Alexandre Rosalino "formalmente" aqui no Coisicas... Contar como o encontrei, falar um pouco da sua obra, do seu envolvimento com o congado mineiro, enfim... trazê-lo pruma boa prosa/entrevista para vocês poderem conhecer um cadiquinho mais esse artista tão especial!

Por ora, deixo vocês curiosos e na expectativa, apenas com o gostinho bom dessa "provinha" belíssima e generosa com que ele nos presenteou...

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8 de janeiro de 2016

Alfredo Bello - guardião das sonoridades brasileiras, por um mundo melhor...


Alfredo Bello não é artesão. Mas, enquanto músico, faz um trabalho que poderia ser comparado ao de um mestre em marchetaria ou na arte dos mosaicos. Recolhendo e unindo "pedaços" pontuais de um material vasto e riquíssimo, ele acaba por revelar os retratos sonoros do nosso Brasil.

Alfredo visita diversas "quebradas" do país e grava eventos musicais que, em princípio, estariam restritos apenas ao círculo da tradição oral, sem nenhum registro senão aquele da memória ou da vivência dos indivíduos dessa ou daquela comunidade. Sim, eu sei, muita gente já fez ou faz isso, a torto e direito, Brasil adentro ou Brasil afora... Mas a maneira como o Alfredo faz isso, porque despretensiosa, é cativanterespeitosa e especial...

Já conhecia o trabalho dele por conta do seu selo, Mundo Melhor, que lança cds com os registros por ele captados do universo musical de diversas tradições populares do Brasil. Já tinha alguns inclusive na minha coleção. Muito bons, aliás... Banda de Pife Princesa do Agreste de Caruaru, Afoxé Oyá Alaxé, Guarda de Moçambique da Nova Gameleira... só para citar alguns.

(Guarda de Moçambique??? Parêntese rapidinho aqui para explicar alguns termos que serão usados nesta postagem para os menos familiarizados com algumas manifestações da cultura popular: GUARDA é o nome dado ao grupo de pessoas que forma um "cortejo cantante" dentro das manifestações conhecidas como Congado, ou Congada - ou ainda, como é mais comumente referido entre os próprios participantes dessas manifestações: Reinado - muito difundidas sobretudo, mas não somente, no sudeste do Brasil. Dentro desses Reinados é comum existirem duas guardas: a de moçambique (que entoa cânticos mais solenes e é formada pelos mais velhos) e a de congo (mais alegre e ligeira e geralmente formada pelas pessoas mais jovens da comunidade). Neste post aqui eu explico mais sobre o assunto). 

E então, um dia, em 2011, visitando a festa de São Benedito em Aparecida do Norte (SP), uma festa linda que reúne centenas de guardas de congo e moçambique vindas de outras cidades de São Paulo, de Minas Gerais e do Espírito Santo, eu e meu marido resolvemos parar em frente à igreja do Santo Negro para ver melhor a movimentação dos grupos que ali paravam para cantar antes de entrar na igreja. Dali teríamos condições de fazer boas fotos do evento... Foi quando uma voz muito firme nos chamou: "ei, casal!"

Alfredo Bello, guardião e disseminador das sonoridades brasileiras
Detalhe: Mastro e Guarda de Congo da Irmandade N. Sra. do Rosário de Justinópolis/MG entrando na Igreja.
Festa de São Benedito em Aparecida do Norte/SP, abril de 2011 - Fotos: Simone dos Santos


Buscamos com o olhar quem chamava. Era um cara sentado no meio-fio, arrumando um monte de cds numa caixinha. Perguntou: "vocês não querem comprar um cd com várias guardas que visitam a festa?" e nos estendeu a mão mostrando o cd. Pegamos pra ver e reconhecemos o selo Mundo Melhor. Eu disse, surpresa: "Que legal! A gente tem um monte de cds dessa série! A gente gosta muito!"

Ele sorriu e disse: "Sou eu que faço".

Não dava pra acreditar. O cara que fazia aqueles registros que a gente tanto admirava, o cara que a gente até já tinha visto em outras festas (só então o cérebro fez a "conexão"!) carregando uma tralha tecnológica sozinho (gravador pendurado no ombro, fones no ouvido, microfones suspensos por uma vara gigante, filmadora na barriga), andando de costas para seguir cortejos captando o melhor som possível (um louco!), fazendo fotos com uma mão, segurando o mic com a outra, ajustando a equalização do gravador, tudoaomesmotempoagora, esse cara estava ali, sentado no chão, no meio dum monte de gente, barraquinhas de doces, crianças correndo, guardas, tambores..., estava pacatamente ali no chão ajeitando seus cds numa caixinha de papelão e nos abordando daquela maneira. Explicou, então, que viera para a festa a fim de reencontrar os grupos de quem fizera aquele registro para entregar, a cada um, a sua cota em cds, uma espécie de contrapartida...

O Alfredo faz tudo sozinho. Ele vai dizer que não, afinal, está cercado de amigos que contribuem como podem. Mas a "locomotiva", o "carvão", a "máquina" que faz mover esse projeto é ele. É dono do selo Mundo Melhor, visita centenas de grupos que preservam as tradições musicais do Brasil e faz os registros e lança em cds, dá palestras, é DJ, pesquisador, contrabaixista, compositor e produtor, tem banda...  Em 2014 eu e meu marido fomos a um show que ele fez no Rio de Janeiro e eu não me lembro de ter dançado tanto nos últimos anos como naquela noite!

Depois daquele primeiro contato na Festa de São Benedito, acabamos encontrando com o Alfredo em outros festejos populares, sempre por acaso. E passamos a nos falar sempre. Nunca nada combinado, sempre de supetão! Já teve ocasião de estarmos distraídos e, de repente, ouvirmos uma voz já familiar nos chamando: "Ei! Casal!"... E é sempre uma alegria imensa poder revê-lo! Faz bem ao coração!

Porque o Alfredo é um cara que vibra numa frequência diferente das pessoas ditas "normais". Afinal, um cara que consegue fazer tanta coisa ao mesmo tempo, que se dispõe com tanta entrega e paixão a registrar por recursos e esforço próprios (muitas vezes sem nenhum apoio ou patrocínio) o que o Brasil tem de mais rico - que é a beleza mais pura das manifestações de alegria e fé do seu povo; um cara que "ENTRA" tendo todo o carinho e respeito das comunidades que o recebem e o aceitam; um cara que está inventariando um legado de imensurável valor cultural... (isso sem contabilizar aqui o fato de ele fazer tudo isso e também andar de costas!), esse cara não poderia ser um cara normal!
 
O Alfredo é um louco. Desses loucos queridos, dos quais somos tão carentes e dos quais o mundo precisa tanto que existam mais e mais para poder se transformar finalmente (e plenamente!) no Mundo Melhor por que tanto ansiamos!


Alfredo Bello, guardião e disseminador das sonoridades brasileiras
Alfredo paramentado e em ação - Festas de Agosto, 2013, Montes Claros (MG) - Foto: Simone dos Santos.

Conheça e se apaixone pelas facetas desse louco desbravador, admirável guardião e incansável disseminador da música e das sonoridades do Brasil e do Mundo!


E aqui: DJ Tudo



Guarda de Moçambique Nossa Senhora da Conceição de Sete Lagoas - MG

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