Bom... daí, eu não tinha mais por quê titubear, né? Com um mote desses (o de nos contar alguns detalhes e nos esclarecer sobre como é seu trabalho), vi chegada a hora de partir pro convite e trazer Marcelo Pimentel aqui pro Coisicas, pra prosear com a gente sobre o que faz um ilustrador! ;)
Então... senta, que lá vem história! ;)
Coisicas Artesanais - Marcelo, acho que, depois dessa introdução, não posso começar por outra pergunta... Como é, afinal, o trabalho de um ilustrador? ;)
Marcelo Pimentel - Não é uma resposta simples, rss. Eu trabalho com ilustração literária, especificamente para livros infantojuvenis (há ilustradores botânicos, de indumentária, publicitários... enfim, de outros gêneros). Basicamente meu trabalho é o de tentar transmitir ideias com imagens, se possível com poesia, com emoção. Em geral, ilustradores de livros interpretam textos com suas imagens, propondo uma releitura, ou seja, uma segunda forma de contar uma história – que em geral não deve contradizer o texto, mas que pode ir além do que ele propõe, trazendo questões próprias, não necessariamente previstas na narrativa verbal. No entanto, a ilustração não depende de um texto para existir, como no caso dos livros de imagem, que contam histórias somente por imagens. Tentando resumir, o ilustrador conta histórias com imagens, partindo de um texto ou apenas de uma ideia, e tem de se fazer entender minimamente pelo leitor, ainda que seu trabalho permita interpretações diversas (como também ocorre com um texto). E o modo de transmitir mensagens visualmente pode ser muito pessoal, variando bastante de um artista para o outro.
C.A. - Hummm... Agora que eu já fiz a pergunta mais urgente (e que a "coisa" está começando a ficar mais clara), já posso fazer a pergunta que faço a todos os meus entrevistados aqui, rs... Em que data e onde você nasceu? ;)
M.P. - Perguntinha embaraçosa essa, hein? Rss. Brincadeira! 26 de abril de 1969, Rio de Janeiro. :)
C.A. - É, menino... Tenho observado que, depois de "certa idade", todo mundo torce o nariz pra essa pergunta! rsrs... Mas, então... Eu vi uma foto no teu blog, você pequenino ainda, com uns desenhos super elaborados pruma criança daquela idade... Vc ali tinha o quê? Uns 6 anos??...
M.P. - Por aí! Eram personagens Disney e até que estavam bem desenhadinhos mesmo, considerando a idade que eu tinha, rss. Eu gostava muito de copiar personagens da TV e dos quadrinhos, fazer e refazer, até conseguir chegar, dentro do possível, a um resultado próximo dos desenhos originais. E passava horas desenhando, fossem cópias ou invenções minhas. Era um prazer.
C.A. - Então desde muito novo você já tinha o pendor (e o talento) para desenhar - e muito bem, né? Nessa época, você imaginava que iria trabalhar com isso?? Quando as pessoas te perguntavam: "o que vai ser quando crescer?", por exemplo, você já podia prever que seria um ilustrador e que o desenho permaneceria tão presente na tua vida?
M.P. - Houve uma fase em que eu queria ser zoólogo e trabalhar com a pesquisa e proteção de grandes feras. E meu ídolo era o "Daktari", o protagonista de uma série homônima de TV dos anos 70 (um veterinário americano que trabalhava na África). Mais tarde, vi que isso iria me requerer talentos que eu não tinha. E a vontade de trabalhar com desenho falou mais alto. Se bem que até hoje prefiro desenhar bicho do que gente!
C.A. - Rsrs... Legal! E nessa fase, na infância, quais eram as tuas brincadeiras favoritas? Peraí... não responde. Eu adivinho... Desenhar! ;)
M.P. - Adorava desenhar, e fazia isso por horas sem me sentir triste ou sozinho. Criava meus próprios personagens e roteiros, às vezes até em formato de Gibi (com grampo e tudo). Minha editora era a imaginária MOP, decorrente das minhas iniciais.
C.A. - Rsrs... Boa!
M.P. - Mas também sempre curti – e muito! – futebol, videogame (já no final da infância), bonecos em miniatura (para os quais construía todos os utilitários que não vinham de fábrica) e aquelas brincadeiras que hoje quase não se vê mais nos grandes centros urbanos, como os "piques". Já pipa e bola de gude não fizeram minha cabeça, não.
C.A. - Bacana! Eu brinquei muito de "pique" também... Pique-cola, pique-bandeira, pique-esconde, pique-tá! =) E como se deu esse trajeto, Marcelo? Como foi que, dessa habilidade incrível para o desenho que você traz desde menino, você trilhou o caminho até se tornar um ilustrador?
M.P. - Há um período na fase escolar em que a maioria das crianças para de desenhar, em parte porque começa a comparar seu desenho com o dos outros colegas e, quando esses têm mais facilidade, os demais se inibem...
C.A. - Não foi esse o teu caso, né? ;)
M.P. - Eu fui um dos que apresentavam mais facilidade para o desenho, um dos poucos que seguiu em frente. Nunca parei. No antigo ginásio (atual ensino Fundamental II) e no 2º grau (hoje, ensino médio) passei a ser chamado pra fazer cartazes escolares ou mesmo caricaturas para cartões de aniversário. E foi também no 2º grau que descobri a profissão de designer gráfico (na época o curso se chamava "Comunicação visual"), para a qual prestei vestibular, tendo sido aprovado para a Escola de Belas Artes da UFRJ. Um dos professores que tive, o Rui de Oliveira – hoje aposentado como professor universitário, mas ilustrador bastante ativo –, é um verdadeiro Mestre da ilustração (com M maiúsculo mesmo), com domínio total da teoria e da prática (estudou por muitos anos em Budapeste). Foi esse professor, que produzia muito para editoras infantojuvenis, que me mostrou as possibilidades da ilustração como atividade profissional, especialmente para a literatura infantojuvenil, cujo mercado então se consolidava no Brasil.
C.A. - Então tua formação é em design, certo? Mas... Um ilustrador não necessariamente precisa ser um designer, né? Que outras formações ou cursos (acadêmicos ou técnicos) podem "criar" um ilustrador?
M.P. - É, não necessariamente. Acho muito importante que o ilustrador tenha sólidas noções de design, até para ir além da ilustração e poder projetar com segurança todo o objeto livro (incluindo suas margens, o corpo e a fonte do texto, etc.). Mas há grandes ilustradores com formação em arquitetura ou pintura, por exemplo. Há, inclusive, autodidatas. No Brasil, não temos ainda escolas voltadas exclusivamente para a formação em ilustração, como ocorre na Europa (com exceção de uma recente, em Recife: a "Usina de Imagens", que vem se firmando nos últimos anos). Então nossa tradição se formou sobre bases multidisciplinares. Porém, mesmo não havendo uma receita rígida para a formação do ilustrador no Brasil, é importante estudar permanentemente para mantermos uma produção de qualidade, assim como ocorre com qualquer outra atividade profissional.
C.A. - E como foi no começo, pra se inserir no mercado? É um meio muito fechado?
M.P. - É sim. E se você já não conhece ninguém no meio, um professor ou amigo que te ajude a se inserir no mercado, o início é um pouco mais difícil. No entanto, em tempos de internet, vejo que as dificuldades de inserção no passado eram muito maiores. Hoje você pode enviar portfolios digitais, fazer rapidamente pela web uma lista de editoras a contatar e, ainda, visitar inúmeros eventos literários anualmente frequentados por autores e editores. Ou seja, pesquisando um pouco e tendo uma produção pra mostrar, é possível ir conseguindo trabalhos pra publicar e adquirindo reconhecimento.
C.A. - Marcelo, você não trabalha apenas como ilustrador, né? Você tem um emprego formal (com "sapato fazendo calo", coisa e tal, rs)... Como é conciliar as duas coisas: ter de se dedicar a um trabalho "comum", digamos assim (que, muitas das vezes, infelizmente, pouco ou nada tem a ver com as reais habilidades e/ou "dons" de cada um) e, ao mesmo tempo, cuidar de atender às demandas e necessidades (sobretudo de expressão artístico-criativas) de um ilustrador?
M.P. - Às vezes é bem difícil, exaustivo mesmo. Gostaria de dedicar mais tempo às atividades de ilustração. Mas conciliar esse trabalho com um outro mais estável foi o modo que encontrei de organizar minha vida, por uma série de razões superiores à minha vontade. Olhando por um viés mais otimista, embora me impeça de me dedicar integralmente à produção de livros, a estabilidade de um emprego formal me permite ser mais criterioso com os trabalhos que produzo. Ou seja, como não vivo exclusivamente dos projetos de livro que realizo, posso decidir quais deles devo realizar e em quanto tempo.
C.A. - Sim... E essa condição te propicia mais liberdade e prazer, né? Poder escolher os projetos a que se dedicar... Isso me faz lembrar um conselho muito sábio que nos foi dado nesta entrevista aqui por Helena Coelho... Ela nos diz que (sobretudo no começo da carreira - e vivendo no Brasil...) é salutar que um artista não dependa exclusivamente da sua produção artística para sobreviver. Assim, sua criação pode se manter livre e ilesa de outras interferências e motivações que escapem a sua arte... Bem, Marcelo, um ilustrador, comumente, ilustra histórias já escritas por outros, né? Mas você citou aqui no começo da entrevista os livros de imagens e, aliás, você é autor de alguns livros com histórias não escritas, né? Eu, particularmente, devo abrir aqui um parêntese pra dizer que acho isso genial! Porque você dá ao pequeno leitor a possibilidade de ser um "co-criador" daquela história, compreendendo-a com suas próprias "ferramentas" de interpretação e fazendo uma leitura com suas próprias possibilidades cognitivas a partir daquelas ilustrações... E isso também se aplicaria, ganhando mais nuances e proporções, a pais e tios que "leem" esses livros para uma criança... "O fim da fila" e "A flor do mato" são dois livros teus que "falam" através de imagens... Como se deu isso? De onde veio a inspiração para se utilizar desse recurso? A intenção é mesmo essa, de dar, digamos, uma espécie de "co-autoria" para o leitor?
M.P. - O livro de imagem, ou livro sem texto, é um gênero de literatura onde a narrativa se dá pela sequência de imagens (pode também não ser exatamente narrativo, mas creio que isso não cabe detalhar aqui, rss). Muitos ilustradores no Brasil e no exterior já se aventuraram por esse caminho e há inclusive um prêmio específico no Brasil para esse tipo de publicação: o prêmio Luís Jardim, oferecido pela FNLIJ - Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Originalmente previstos para o público infantil, os livros de imagem e os livros ilustrados com pouco texto (onde a imagem predomina) têm obtido reconhecimento como obras de arte, inclusive com a criação de mostras internacionais e premiações específicas, transcendendo o universo mais focado nas crianças, como já o fizeram, há algum tempo, o cinema de animação e os quadrinhos... E, sim, uma das principais características de um livro de imagem é permitir diferentes interpretações, dependendo das vivências de cada leitor. E isso é de uma riqueza enorme! A essência da história em geral é compreendida por todos, mas as suas nuances e até mesmo o seu final podem ser entendidos de modo diverso pelos leitores, proporcionando uma experiência bastante interativa.
C.A. - Marcelo, fala um pouquinho do seu livro mais recente, lançado no ano passado... Um livro super bonito, neste estilo sem texto, apenas com imagens: "A flor do mato". O que te inspirou a criá-lo?
M.P. - Quando eu tinha uns treze ou catorze anos, li um conto do escritor Herberto Sales sobre a personagem folclórica "Flor do mato", uma menina encantada que atraía crianças para o fundo da mata. Fui envolvido pela história e a carreguei na memória pela vida afora. Anos depois, pensando na possibilidade de produzir um segundo projeto autoral (já tinha lançado um primeiro, o livro de imagem "O fim da fila", publicado em 2011 pela Editora Rovelle, com grande sucesso), surgiu a ideia de uma nova narrativa visual a partir da lenda da "Flor do mato". Gosto sempre de adaptar meu traço ao espírito do texto. Como a lenda da Flor do mato é originária de algumas áreas rurais nordestinas – principalmente a Zona da Mata de Pernambuco e da Paraíba – decidi inspirar meu traço no Maracatu rural, uma manifestação típica dessa região e de presença muito forte, sobretudo, na zona canavieira de Pernambuco. Me inspirei no seu principal personagem, o Caboclo de lança, cujos trajes apresentam grafismos muito característicos: estampas florais e arabescos multicoloridos. Com tudo isso em mente, a lenda, os grafismos, as estampas, parti para as ilustrações. Os primeiros esboços são de 2014... Nesse trabalho usei técnicas que variam do nanquim e do guache (nas cenas em preto e branco) para a tinta acrílica combinada com a colagem (nas cenas coloridas – principalmente de acabamentos de bordado como sianinhas, guipires)... E foi assim que nasceu "A flor do mato", uma história que trata de diversas questões, além do tema folclórico em si: família, solidão, amadurecimento, sedução... Uma história quase sem texto (há uma página de diálogo quase no fim do livro), baseada em lenda pouco conhecida fora de seu território original e cujo traço se inspirou nos grafismos de uma tradição local.
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No alto, detalhes da indumentária dos Caboclos de lança, inspiração que norteou os traços do artista em seu mais recente trabalho: A flor do mato (foto abaixo). As imagens dos bordados típicos do maracatu rural são daqui. |
C.A. - É muito bacana isso de você se inspirar em grafismos típicos duma manifestação cultural tão marcante naquela região para traçar e dar vida aos personagens e ambientes daquela história! E é impressionante a similaridade dos teus traços com as formas e cores presentes no maracatu rural! A flor do mato é mesmo um livro muito lindo e, se me permite o "trocadilho", encantador! rs... E ele foi laureado em vários concursos e programas literários, né? ;)
M.P. - Sim! Felizmente o livro tem obtido bastante reconhecimento por aí... No ano passado, ele foi selecionado para o PNLD Literário (maior programa governamental de aquisição de livros para escolas públicas); e foi premiado num concurso lá em Moscou, na Rússia: o "Image of the book". Agora, em 2019, recebeu o selo "Altamente Recomendável" da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), na categoria "Livro de Imagem" e ficou entre os finalistas do Prêmio da AEILIJ (Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil) pelo conjunto de suas ilustrações...
C.A. - Nossa, Marcelo! Bacana demais! Merecido reconhecimento para um trabalho tão belo quanto delicado! Parabéns! =) Bem... eu sempre peço pros meus entrevistados deixarem dicas para quem está começando, porque acho que muita gente que acaba caindo aqui no blog pode se inspirar em vocês... Daí eu queria te perguntar que dica você poderia deixar pra molecada de agora que, na contramão do uso de tablets e outras ferramentas digitais, gosta de desenhar e quer enveredar por esse caminho...
M.P. - Simone, atualmente vejo muita gente do desenho realizando seus trabalhos (muitos deles ótimos) por meio digital. Uma coisa não exclui a outra, as ferramentas digitais foram mais uma alternativa que se abriu para a expressão através do desenho.
C.A. - É verdade... Muito bem observado!
M.P. - Apesar de reconhecer isso, eu, particularmente, não curto trabalhar com desenho e pintura digital (talvez um dia, rss) – sou mais do lápis e das tintas, do fazer tátil, orgânico.
C.A. - Super compreendo... E super compartilho do gosto pelo fazer mais orgânico e tátil, como diz. A coisa mais "tecnológica" que me atrevo a fazer, aliás, é escrever neste blog, rsrs... Mas... e pra garotada que quer desenhar profissionalmente?
M.P. - Bem, acho que o primeiro passo para tentar se inserir no mercado da ilustração é aprimorar as técnicas de desenho e pintura, assim como as linguagens (meios de expressão) nos ambientes de ensino: na universidade ou em cursos e workshops. Há ilustradores autodidatas, mas eu diria que o contato com profissionais experientes encurta bastante os caminhos. Para se adquirir um repertório de linguagens se deve ver com frequência o que é feito e o que já foi feito em ilustração (no meu caso, foquei mais o mercado editorial, especificamente na área de literatura para crianças e jovens). Só é possível crescer e se aprimorar conhecendo os vários estilos e ferramentas de profissionais ativos e daqueles que deixaram um legado. Pra quem gosta de ilustração de livros, por exemplo, é ótimo visitar encontros e feiras literárias e ver o que outros ilustradores estão produzindo.
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Marcelo Pimentel apresenta "A flor do mato" - Foto: André Pinnola - 20º Salão
FNLIJ do Livro para Crianças e Jovens - Espaço FNLIJ Ilustrador - 04/07/2018 |