'Histórias de não esquecer' é um projeto de livro inacabado, engavetado e (impossível não comentar a ironia), por fim, esquecido... Recentemente, decidi colocá-lo à janela pra tomar luz e arejar um pouco (depois de uma "prosa lunar" com uma amiga querida) e, para que o esforço no desembolorar fosse mais efetivo, decidi publicar alguns de seus capítulos por aqui...
Neste primeiro (que haveria de ser, talvez, o quinto capítulo do meu livro imaginado), eu conto a história do Libório, que vos convido a conhecer agora.
Obs.: para quem prefere ouvir histórias em vez de ler, ao final desse texto deixo um áudio. É só correr a barra até o fim e clicar na caixa para ouvir. ;)
Obs.: para quem prefere ouvir histórias em vez de ler, ao final desse texto deixo um áudio. É só correr a barra até o fim e clicar na caixa para ouvir. ;)
Histórias de não esquecer
Simone dos Santos
Aos meus avós...
E aos teus também.
Capítulo ... V (?)
Pois que era assim, desse
jeito mesmo, o Libório... Homem tão bondoso, mas tão bondoso, que diziam até
que ele era é santo. Coisa que nem fazia de ser exagero nenhum não, pois que o
Libório era capaz de tirar a própria roupa do corpo pra ofertar a quem ele
soubesse de passar necessidade de agasalho em dia de frio.
Capaz que herdou a bondade
da mãe, que por sua vez herdou da avó dele, que herdou da bisavó e por aí
vai..., pois que vinha du’a família de velhas benzedeiras, e benzedeira, todo
mundo sabe (ou ao menos devia de saber), é pessoa que passa u’a vida inteirinha
pra fazer o bem pros outros, feito missão de entrega, de doação, de caridade...
Mas ele não. Libório não era benzedeiro. Não indicava simpatia, nem banho de
descarrego; não curava de espinhela caída, nem de desencanto nem de mal de
quebranto. Só era é bom mesmo.
E
sucede que o Libório, mesmo sendo filho, neto e bisneto de benzedeiras, u’as
donas que trabalharam o tempo todinho arredando o mal pra longe, o Libório não
via maldade era em coisa nenhuma não. E que, de ver o Libório assim tão alheio
à coisa ruim, tão descrente de olho gordo e sem nem medo de assombração nem de
encruzilhada, sem carregar figa no peito, nem crucifixo, nem santinho, nem
guia, nem patuá, sem nem fazer o sinal da cruz e nem coisica nenhuma de
proteçãozinha assim ó, foi de ver o Libório assim, tão alheio e despreocupado
da ruindade do mundo, que o povo tudo começou a achar que era mesmo santo,
o homem.
Por
causa de que... veja bem se não tenho razão: como é que podia um homem tão
desatento ao mal e desarmado assim não ser acometido de desgraceira ruim
nenhuma? Havia quem dissesse que o Libório tinha crédito de proteção era por
causa do trabalho feito a vida inteirinha pelas 3 velhas, sua mãe, sua avó e
sua bisa... Vai ver até que era... Mas será?... Era
o que o povo tudo se perguntava...
E
era assim que seguia, o Libório, a vidinha dele de cada dia: desapercebido das
maldades do mundo e sempre disposto a fazer o bem. Era como se essa sua
desapercebição diante das maldades do mundo é que era, justamente, o seu
livramento, o que servia de escudo e proteção para ele, sabe? Que, afinal, o
mal espreita mesmo é aqueles que têm olhos de ver o mal... Que, nesses casos (e
n’outros também), o mal já está presente é dentro dos olhos de quem o vê... Né
não?
Morava
na travessa por detrás da Matriz da Conceição, subindinho lá pra riba, toda
vida, quase que beirando já a encosta do morro verde. E era por todos conhecido
- té mesmo por ser da família das benzedeiras, a quem toda gente do vilarejo recorria
nos casos de acudimento por qualquer ordem de coisa. E desordem também. Desde muito menino causava já
admiração nos outros com seus bons modos e educação. Nem parecia de ser o
meninote que era, porque, em idade de aprontar traquinagens e molequices, ele
tinha ares já de homenzinho responsável, cheio dum palavrório bonito, cheio
duma calmitude galante e sempre gentil com os mais velhos, que nem que se fosse
gente grande já, o menino.
Mas
é que a vida tem dessas surpresas mesmo, né não? E quem pensa que conhece o
outro pode é de estar muito do enganado. Pois que o Libório, mesmo com todo
aquele currículo pra santo, com toda educação que recebeu das velhas, com todo
o jeito de homem puro e bom, o Libório deu foi de beber depois de homem feito.
Bebia, mas bebia tanto, que era de se espantar que ainda não tivesse se
afogado, o homem. Ou explodido, quando passava perto de fogueira ou de fogão...
Dizem por aí é que foi por causa de amor não correspondido que nutria pela filha do seu Nacreto da quitanda: a Nicinha. E que depois que a moça enoivou de Pedro ferreiro, então, é que a coisa desandou de vez na vida do pobre: afundou-se na bebida e foi perdendo o viço, o jeito galante, os bons modos... Não tardou muito e perdeu o trabalho e, por fim, ia já perdendo a admiração de todos - té mesmo da Nicinha! E daí que bambeava pelas ruas, o coitado, e era já comum dar com ele caído pelo chão, sujo e fedegoso, não falando coisa com coisa, chamando Jesus de Genésio... As crianças mais encabruncadas lhe atiravam pedras e bosta de cavalo quando ele tombava no chão da praça, xingavam... Triste demais da conta ver um homem bom que nem ele entregue ao vício assim daquele jeito... De partir mesmo o coração, sabe?
As
pessoas que tinham carinho por ele tentavam ajudar da maneira que podiam.
Don’Aninha mesmo - que o Libório, desde meninote, sempre que via Don'Aninha
chegando da feira com uns pacotes pesados, ele ajudava a subir com tudo a
ladeira até a casa dela (uns pacotes maiores que ele!)... Don’Aninha té
promessa fez! Acendeu vela pra Santo Onofre - que é santo muito requisitado pra
esses casos de vício com bebida, sabe? E o tanto que aconselhou, a velha, que
ele tomasse tento, que tomasse juízo, ô Libório! Mas ele, parece, não se amofinava
não. Os aconselhamentos tudo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. E o
pobre diabo se perdia na bebida...
Daí
que passou de homem bom a coitado, de coitado a enfastio, a encosto, e de tudo
isso a motivo já de zombaria e falação por toda vizinhança... Ah, se dona Rosa
'inda fosse viva isso não sucedia dessa forma não senhora, não sucedia assim
não senhor, que dona Rosa pegava e fazia uma reza forte mor de livrar o filho
do vício, fosse viva 'inda... Ah, se fazia! E quanto desgosto pra dona Zéfa
(que Deus a tenha), que donde que ela está deve é de estar com o coração doído
de ver o neto nesse estado lastimoso que só! Né não? Ai, é! E isso sem falar em
dona Jupira, lembra dela? Coitada! Quanto vexame pru’a mulher de bem como ela,
que ela, mulher assim de fibra de como que ela era, tirava o vício do safado do
bisneto era na coça, que isso sim é lição que se tire de vagabundo!... Era o
que o povo tudo já falava.
Pois
que dizem que, de tanto as pessoas falarem do Libório lembrando a memória das 3
velhas, foi que as almas delas acabaram ouvindo tanto lamurio e quiseram vir cá
se inteirar mais de perto do que estava acontecendo... Quê que tanto essa gente
fuxicava no nome delas?! Diz que foi assim, sim... E que durante umas 9 semanas,
em toda noite de lua nova, depois que todos no vilarejo adormeciam, diz que
aconteciam coisas do outro mundo na casa do Libório. Era vela que acendia
sozinha, voz de mulher carpindo prece, pranteando cura, e a voz do Libório
gemendo um gemido sofrido de dar dó, que nem quando se tem delírio de febre
ardida, sabe? ... Era o que o povo tudo, então, comentava...
O
Libório não falava nada. De nada nem se alembrava não. Passava os dias com sua
pinga debaixo do braço, quietinho, matutando só... As crianças estranhavam
aquela brandura toda num bêbado e já não viam muita graça mais em bulir com o
pobre. Espiavam só... Os vizinhos mais próximos, por curiosidade ou
preocupação, de primeiro perguntavam como que ele estava, se estava bonzinho,
se havia passado bem a noite... “Tem passado bem as noite, fii?”...
De depois perguntavam se ele não ouviu ruídos estranhos pela casa, se não
percebeu movimentação suspeitosa..., e de por último, não havendo resposta por
parte de Libório que esclarecesse o mistério, e porque a preocupação ou
curiosidade estava já em fase de rói-corrói, as pessoas falavam pra ele já de
assombração, que ouviram as vozes das 3 velhas benzedeiras e pereré-pão-doce...
O
pobre do Libório muito que se espantava com esses comentários e passou a pensar
que as pessoas tudo da vila estavam ficando bêbedas eram elas! Ou então... que
ele andava mesmo era bebendo demais, que a bebida fazia ele apagar feito pedra
e não ouvia era nada do estardalhaço todo que as pessoas comentavam andar
escutando na casa dele, de modo que carecia, talvez, de dar mais ouvido mesmo
às palavras de Don’Aninha... que parasse de beber...
Mas
que foi assim desse jeitinho mesmo que sucedeu naquelas 9 semanas, sabe? Toda
noite penumbrosa de lua nova era aquela mesma gemedeira toda, as vozes das 3
velhas em choramingo de ladainha, velas que se acendiam sozinhas... E, com
isso, os vizinhos mais de pertinho, que viam o lume e as sombras das velas e
ouviam toda a estranha movimentação na casa do Libório, passaram a rezar também
naquelas mesmas noites (não se sabe se por temor ou por respeito, se por
simpatia ou por compaixão), de modo que acabou se formando ali, naquele
quarteirão inteirinho, u’a espécie de corrente invisível de luz e proteção, sabe?
Que isso é coisa muito verdadeira, embora muita gente desacredite...
Caso é que no final dessas 9 semanas o Libório foi procurar Don’Aninha. Precisava contar duns sonhos recorrentes que andava tendo ultimamente. Disse que por mais de vez teve o mesmo sonho com a mãe pedindo que ele fosse junto mais Don’Aninha pagar u’a promessa feita a Santo Onofre. Libório não entendia, mas... Afe! Que os olhinhos de Don’Aninha chegaram a brilhar de lacrimejo, tamanha a emoção, pois que ela entendeu tudinho, Libório não carecia de entender nada, não, mas ela não teve a menor dúvida: a graça tinha sido alcançada! O sonho era a confirmação!
De
fato, depois disso o Libório estava que era mesmo um novo homem! Aliás, novo
não - no caso, o velho homem! Largou a bebida e voltou a ser o bom e velho
Libório de sempre, aprumado e galante, disposto a fazer o bem, de coração puro
e desapercebido das maldades de entorno do mundo, com olhos de enxergar só o
bem, um poço de bondade que só, igualzinho-igualzinho como que era antes!
Bem..., igualzinho-igualzinho... não chega a tanto, pois que Libório tinha agora um novo hábito. Toda noite, antes de dormir, ele virava uma goladinha de pinga, mas era uma goladinha só: a segunda - que a primeira era derramada em honra de Santo Onofre. Mas... que ninguém precisasse de saber disso, não senhora, não senhor, que isso era lá segredo entre cavalheiros, sabe? E que, sendo assim, haveria de ficar era só entre eles dois mesmo: Libório e o Santo.
"Histórias de não esquecer" é um projeto de livro de autoria de Simone dos Santos, com histórias que narram 'causos' e apresentam personagens cada vez mais raros nos dias de hoje... Uma maneira de tentar abrandar a velocidade com que vamos nos esquecendo dos modos de viver, das crenças e das situações que ocuparam a existência dos nossos avós e bisavós quando eles passaram por aqui e que, assim, "desesquecendo", possamos tê-los por perto um bocadinho mais...
A próxima história, "Lição de amor de Tuninho Passarinho", será publicada nas próximas semanas... Fique de olho! ;)
Coisa linda, texto e narração! Parabéns! Aguardo as próximas histórias. beijos
ResponderExcluirAgradecida e feliz! :)
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