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9 de junho de 2020

Histórias de não esquecer - A cura do Libório


'Histórias de não esquecer' é um projeto de livro inacabado, engavetado e (impossível não comentar a ironia), por fim, esquecido... Recentemente, decidi colocá-lo à janela pra tomar luz e arejar um pouco (depois de uma "prosa lunar" com uma amiga querida) e, para que o esforço no desembolorar fosse mais efetivo, decidi publicar alguns de seus capítulos por aqui...

Neste primeiro (que haveria de ser, talvez, o quinto capítulo do meu livro imaginado), eu conto a história do Libório, que vos convido a conhecer agora.

Obs.: para quem prefere ouvir histórias em vez de ler, ao final desse texto deixo um áudio. É só correr a barra até o fim e clicar na caixa para ouvir. ;)




Histórias de não esquecer 
Simone dos Santos


Aos meus avós...
E aos teus também.


Capítulo ... V (?)

A cura do Libório


Histórias de não esquecer - A cura do Libório - Simone dos Santos

           
            Pois que era assim, desse jeito mesmo, o Libório... Homem tão bondoso, mas tão bondoso, que diziam até que ele era é santo. Coisa que nem fazia de ser exagero nenhum não, pois que o Libório era capaz de tirar a própria roupa do corpo pra ofertar a quem ele soubesse de passar necessidade de agasalho em dia de frio.

            Capaz que herdou a bondade da mãe, que por sua vez herdou da avó dele, que herdou da bisavó e por aí vai..., pois que vinha du’a família de velhas benzedeiras, e benzedeira, todo mundo sabe (ou ao menos devia de saber), é pessoa que passa u’a vida inteirinha pra fazer o bem pros outros, feito missão de entrega, de doação, de caridade... Mas ele não. Libório não era benzedeiro. Não indicava simpatia, nem banho de descarrego; não curava de espinhela caída, nem de desencanto nem de mal de quebranto. Só era é bom mesmo.

            E sucede que o Libório, mesmo sendo filho, neto e bisneto de benzedeiras, u’as donas que trabalharam o tempo todinho arredando o mal pra longe, o Libório não via maldade era em coisa nenhuma não. E que, de ver o Libório assim tão alheio à coisa ruim, tão descrente de olho gordo e sem nem medo de assombração nem de encruzilhada, sem carregar figa no peito, nem crucifixo, nem santinho, nem guia, nem patuá, sem nem fazer o sinal da cruz e nem coisica nenhuma de proteçãozinha assim ó, foi de ver o Libório assim, tão alheio e despreocupado da ruindade do mundo, que o povo tudo começou a achar que era mesmo santo, o homem.

            Por causa de que... veja bem se não tenho razão: como é que podia um homem tão desatento ao mal e desarmado assim não ser acometido de desgraceira ruim nenhuma? Havia quem dissesse que o Libório tinha crédito de proteção era por causa do trabalho feito a vida inteirinha pelas 3 velhas, sua mãe, sua avó e sua bisa... Vai ver até que era... Mas será?... Era o que o povo tudo se perguntava... 

            E era assim que seguia, o Libório, a vidinha dele de cada dia: desapercebido das maldades do mundo e sempre disposto a fazer o bem. Era como se essa sua desapercebição diante das maldades do mundo é que era, justamente, o seu livramento, o que servia de escudo e proteção para ele, sabe? Que, afinal, o mal espreita mesmo é aqueles que têm olhos de ver o mal... Que, nesses casos (e n’outros também), o mal já está presente é dentro dos olhos de quem o vê... Né não?

            Morava na travessa por detrás da Matriz da Conceição, subindinho lá pra riba, toda vida, quase que beirando já a encosta do morro verde. E era por todos conhecido - té mesmo por ser da família das benzedeiras, a quem toda gente do vilarejo recorria nos casos de acudimento por qualquer ordem de coisa. E desordem também. Desde muito menino causava já admiração nos outros com seus bons modos e educação. Nem parecia de ser o meninote que era, porque, em idade de aprontar traquinagens e molequices, ele tinha ares já de homenzinho responsável, cheio dum palavrório bonito, cheio duma calmitude galante e sempre gentil com os mais velhos, que nem que se fosse gente grande já, o menino.

            Mas é que a vida tem dessas surpresas mesmo, né não? E quem pensa que conhece o outro pode é de estar muito do enganado. Pois que o Libório, mesmo com todo aquele currículo pra santo, com toda educação que recebeu das velhas, com todo o jeito de homem puro e bom, o Libório deu foi de beber depois de homem feito. Bebia, mas bebia tanto, que era de se espantar que ainda não tivesse se afogado, o homem. Ou explodido, quando passava perto de fogueira ou de fogão... 

            Dizem por aí é que foi por causa de amor não correspondido que nutria pela filha do seu Nacreto da quitanda: a Nicinha. E que depois que a moça enoivou de Pedro ferreiro, então, é que a coisa desandou de vez na vida do pobre: afundou-se na bebida e foi perdendo o viço, o jeito galante, os bons modos... Não tardou muito e perdeu o trabalho e, por fim, ia já perdendo a admiração de todos - té mesmo da Nicinha! E daí que bambeava pelas ruas, o coitado, e era já comum dar com ele caído pelo chão, sujo e fedegoso, não falando coisa com coisa, chamando Jesus de Genésio... As crianças mais encabruncadas lhe atiravam pedras e bosta de cavalo quando ele tombava no chão da praça, xingavam... Triste demais da conta ver um homem bom que nem ele entregue ao vício assim daquele jeito... De partir mesmo o coração, sabe?

            As pessoas que tinham carinho por ele tentavam ajudar da maneira que podiam. Don’Aninha mesmo - que o Libório, desde meninote, sempre que via Don'Aninha chegando da feira com uns pacotes pesados, ele ajudava a subir com tudo a ladeira até a casa dela (uns pacotes maiores que ele!)... Don’Aninha té promessa fez! Acendeu vela pra Santo Onofre - que é santo muito requisitado pra esses casos de vício com bebida, sabe? E o tanto que aconselhou, a velha, que ele tomasse tento, que tomasse juízo, ô Libório! Mas ele, parece, não se amofinava não. Os aconselhamentos tudo entravam por um ouvido e saíam pelo outro. E o pobre diabo se perdia na bebida...

            Daí que passou de homem bom a coitado, de coitado a enfastio, a encosto, e de tudo isso a motivo já de zombaria e falação por toda vizinhança... Ah, se dona Rosa 'inda fosse viva isso não sucedia dessa forma não senhora, não sucedia assim não senhor, que dona Rosa pegava e fazia uma reza forte mor de livrar o filho do vício, fosse viva 'inda... Ah, se fazia! E quanto desgosto pra dona Zéfa (que Deus a tenha), que donde que ela está deve é de estar com o coração doído de ver o neto nesse estado lastimoso que só! Né não? Ai, é! E isso sem falar em dona Jupira, lembra dela? Coitada! Quanto vexame pru’a mulher de bem como ela, que ela, mulher assim de fibra de como que ela era, tirava o vício do safado do bisneto era na coça, que isso sim é lição que se tire de vagabundo!... Era o que o povo tudo já falava.

            Pois que dizem que, de tanto as pessoas falarem do Libório lembrando a memória das 3 velhas, foi que as almas delas acabaram ouvindo tanto lamurio e quiseram vir cá se inteirar mais de perto do que estava acontecendo... Quê que tanto essa gente fuxicava no nome delas?! Diz que foi assim, sim... E que durante umas 9 semanas, em toda noite de lua nova, depois que todos no vilarejo adormeciam, diz que aconteciam coisas do outro mundo na casa do Libório. Era vela que acendia sozinha, voz de mulher carpindo prece, pranteando cura, e a voz do Libório gemendo um gemido sofrido de dar dó, que nem quando se tem delírio de febre ardida, sabe? ... Era o que o povo tudo, então, comentava...

            O Libório não falava nada. De nada nem se alembrava não. Passava os dias com sua pinga debaixo do braço, quietinho, matutando só... As crianças estranhavam aquela brandura toda num bêbado e já não viam muita graça mais em bulir com o pobre. Espiavam  só... Os vizinhos mais próximos, por curiosidade ou preocupação, de primeiro perguntavam como que ele estava, se estava bonzinho, se havia passado bem a noite... “Tem passado bem as noitefii?”... De depois perguntavam se ele não ouviu ruídos estranhos pela casa, se não percebeu movimentação suspeitosa..., e de por último, não havendo resposta por parte de Libório que esclarecesse o mistério, e porque a preocupação ou curiosidade estava já em fase de rói-corrói, as pessoas falavam pra ele já de assombração, que ouviram as vozes das 3 velhas benzedeiras e pereré-pão-doce...

            O pobre do Libório muito que se espantava com esses comentários e passou a pensar que as pessoas tudo da vila estavam ficando bêbedas eram elas! Ou então... que ele andava mesmo era bebendo demais, que a bebida fazia ele apagar feito pedra e não ouvia era nada do estardalhaço todo que as pessoas comentavam andar escutando na casa dele, de modo que carecia, talvez, de dar mais ouvido mesmo às palavras de Don’Aninha... que parasse de beber...

            Mas que foi assim desse jeitinho mesmo que sucedeu naquelas 9 semanas, sabe? Toda noite penumbrosa de lua nova era aquela mesma gemedeira toda, as vozes das 3 velhas em choramingo de ladainha, velas que se acendiam sozinhas... E, com isso, os vizinhos mais de pertinho, que viam o lume e as sombras das velas e ouviam toda a estranha movimentação na casa do Libório, passaram a rezar também naquelas mesmas noites (não se sabe se por temor ou por respeito, se por simpatia ou por compaixão), de modo que acabou se formando ali, naquele quarteirão inteirinho, u’a espécie de corrente invisível de luz e proteção, sabe? Que isso é coisa muito verdadeira, embora muita gente desacredite...

            Caso é que no final dessas 9 semanas o Libório foi procurar Don’Aninha. Precisava contar duns sonhos recorrentes que andava tendo ultimamente. Disse que por mais de vez teve o mesmo sonho com a mãe pedindo que ele fosse junto mais Don’Aninha pagar u’a promessa feita a Santo Onofre. Libório não entendia, mas... Afe! Que os olhinhos de Don’Aninha chegaram a brilhar de lacrimejo, tamanha a emoção, pois que ela entendeu tudinho, Libório não carecia de entender nada, não, mas ela não teve a menor dúvida: a graça tinha sido alcançada! O sonho era a confirmação!

            De fato, depois disso o Libório estava que era mesmo um novo homem! Aliás, novo não - no caso, o velho homem! Largou a bebida e voltou a ser o bom e velho Libório de sempre, aprumado e galante, disposto a fazer o bem, de coração puro e desapercebido das maldades de entorno do mundo, com olhos de enxergar só o bem, um poço de bondade que só, igualzinho-igualzinho como que era antes! 


            Bem..., igualzinho-igualzinho... não chega a tanto, pois que Libório tinha agora um novo hábito. Toda noite, antes de dormir, ele virava uma goladinha de pinga, mas era uma goladinha só: a segunda - que a primeira era derramada em honra de Santo Onofre. Mas... que ninguém precisasse de saber disso, não senhora, não senhor, que isso era lá segredo entre cavalheiros, sabe? E que, sendo assim, haveria de ficar era só entre eles dois mesmo: Libório e o Santo.


Histórias de não esquecer - A cura do Libório - Simone dos Santos


* * *

Pra ouvir essa história, clique abaixo:

"Histórias de não esquecer" é um projeto de livro de autoria de Simone dos Santos, com histórias que narram 'causos' e apresentam personagens cada vez mais raros nos dias de hoje... Uma maneira de tentar abrandar a velocidade com que vamos nos esquecendo dos modos de viver, das crenças e das situações que ocuparam a existência dos nossos avós e bisavós quando eles passaram por aqui e que, assim, "desesquecendo", possamos tê-los por perto um bocadinho mais...

A próxima história, "Lição de amor de Tuninho Passarinho", será publicada nas próximas semanas... Fique de olho! ;)


Atualização: conheça a história do Tuninho Passarinho, já publicada - Aqui ;)

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