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29 de junho de 2020

Histórias de não esquecer - O velho, o pássaro e o Santo


Quem vem acompanhando o Coisicas de pertinho já deve ter lido (ou escutado) as duas histórias que publiquei anteriormente, sobre o Libório (aqui) e sobre o Tuninho Passarinho (aqui). 

Se você está chegando só agora por aqui, não continue lendo esse post. Dá um pulinho primeiro nos links acima pra conhecer aquelas histórias e aqueles personagens e, só depois, volta cá pra seguir com essa leitura e poder acompanhar tudo direitinho, sem perder nenhum detalhe! ;)

Aqui também será possível apenas ouvir essa história, caso seja de sua preferência. Basta rolar a barra até o final do texto, onde está a caixa com o áudio.

Mas, então... Hoje eu venho apresentar mais uma daquelas minhas "Histórias de não esquecer"... Mas esta nem chega a ser, assim, por bem dizer, uma históóória propriamente dita, pois que não nos traz nenhuma "novidade", nenhum "causo", nenhum novo personagem (ao contrário), e visto se tratar mesmo de um certo desfecho, uma conclusão... Curtinha e ligeira, tem tons amarelados de fim de tarde que poderão deixar a impressão de um "té mais ver" depois de uma longa e boa prosa...

Por ora, então, até mais ver! ;)





Histórias de não esquecer 
Simone dos Santos


Aos meus avós...
E aos teus também.


Capítulo ... VII (?)

O velho, o pássaro e o Santo




            Sentado na varanda de casa, o velho puxava pela memória de certa vez que viajou dois dias em lombo de burrico pra mor de acudir um menino acamado de mágoa... A viagem foi demorada por causa de que era já bem velho naquela ocasião e a coluna não suportaria galopada de ligeiro, como em época de sua mocitude - razão pela qual escolheu de ir mesmo em burrico, que é bicho pacato e de pernas curtas, que assim poderia tolerar bem a lonjura e os solavancos do caminho... E seguiram devagarzinho, velho e burrico, parandinho ao longo do trajeto, por necessidade de pouso pra descanso ou de comida mesmo  (para ambos), em casa de quem pudesse ou quisesse ajudar - que todos eram muito dispostos a acolher e ajudar o bom velho, muito querido e afamado em toda aquela região pelo seu dom de cura e caridade.

            Puxava essas coisas pela memória, daquela viagem tão custosa que fizera pra acudir ao menino de nome passarinho (e se ria, o velho, da alcunha do menino!) e se perguntava também, rememorando aquele ocorrido de tantos anos já se iam, se o pequeno teria compreendido as coisas que ele falou sobre o bem-querer, sobre o amor - que são, afinal, a mesma coisa, posto que amar é querer o bem de quem se ama e regozijar-se no bem do outro... Receava mesmo que não, não teria entendido, não, pois que era tão novinho, meninote ainda... Mas que, agora, devia era de estar moço-feito já e talvez tivesse melhor entendimento..., mas será que se alembrava?... Como será estaria aquele menino?...

            Foi despertado de seus pensamentos (vejam só, vocês...) pela cantoria estridente dum saíra que pousara na goiabeira sobejada de frutos no quintal. Que belezinha de saíra! Que, pelo capricho e vivo das cores das penas, haveria de ser saíra macho, sim... E que, pela estridência estrepitosa no seu modo de piar e pelo modo irrequieto e afoito como o bichinho se movia e se agitava, tudo fazia crer - e o velho sabia bem: era certo que vinha fugido d'alguma gaiola ou arapuca na redondeza, vinha sim... Ora! Melhor pro bichinho! E se ria, o velho, da liberdade flagrante e da graça vivaz daquele bichinho! E daquele instante.

            Curioso, isso, né?.... Creio que estamos todos nos fazendo a mesma pergunta agora... Pois que todos nós, que sabemos da história do Tuninho e sabemos que Tuninho ganhou um saíra depois que o velho esteve em sua casa, e que cuidou do bichinho por tantos anos e que acabou por se lembrar do velho e de soltar o seu saíra pra liberdade, agorinha, há bem pouco, e que poderá estar, ainda, nesse instantinho mesmo, o Tuninho, se refazendo do choro em colo de Beré, sua mãe, todos nós vemos nesse fato, dum saíra ter pousado ali no quintal do velho, na exata hora em que o velho se recordava do menino, uma coincidência demasiado novelesca, né não?

            Mas o velho não poderia supor tais coisas e, portanto, pareceu-lhe coisa muito comum um saíra pousar ali, e que, ademais, fato é que o velho não acreditava em coincidências, não senhora, não senhor, pois que cria mesmo era que cada petalinha que se desprende du'a flor e que cai sobre a relva, no chão, tem sua razão de ser nessa vida nossa - que é de Deus. Mas que... ao receber visita assim, de bichinho todo serelepe celebrando e agradecendo a vida, ali no seu quintal, justo naquela hora, quando recordava e matutava aquelas coisas, o velho, no seu íntimo, teve sua resposta... E estava satisfeito por demais com isso e, de resto, naquela hora, não importava mais nada, não.

            Mas... que a tardinha mal chegara e já se ia! Aqueles dias de outono eram mesmo assim, curtinhos... Ou então era ele que estava demasiado velho já pra acompanhar a rapidez dos novos tempos sem se espantar! Afe... Hora já de se recolher... Antes, contudo, o velho fez o de costume: encheu seu copinho de pinga e derramou um gole pra Santo Onofre, com quem tinha grande apego de fé, desde moço ainda - história comprida... Bebeu o gole que era o seu, o segundo, e entrou pra casa mor de se abrigar, pois que a noite vencia já os últimos lampejos da luz do sol e que, já-já, haveria de esfriar um bocado!




Para ouvir essa história, clique abaixo:


"Histórias de não esquecer" é um projeto de livro de autoria de Simone dos Santos, com histórias que narram 'causos' e apresentam personagens cada vez mais raros nos dias de hoje... Uma maneira de tentar abrandar a velocidade com que vamos nos esquecendo dos modos de viver, das crenças e das situações que ocuparam a existência dos nossos avós e bisavós quando eles passaram por aqui e que, assim, "desesquecendo", possamos tê-los por perto um bocadinho mais...


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